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Guantánamo: uma história de violações

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Submitted by eopen on qua, 18/07/2018 – 09:49 A decisão da Suprema Corte americana anunciada
em 12 de junho, reconhecendo o direito dos prisioneiros de Guantánamo
de recorrer a tribunais federais, significa uma vitória dos direitos
humanos sobre o arbítrio perpetrado a partir de 11 de setembro de 2001
pelo governo dos Estados Unidos.Sabe-se que com a invasão do Afeganistão
e do Iraque, centenas suspeitos da prática de terrorismo foram presos
pelas forças americanas e recolhidos em várias prisões dentre as quais
a da base de Guantánamo, em Cuba. Os problemas jurídicos relacionados
com essas prisões começam com uma pergunta bastante simples: quem vai
julgar tais pessoas? Obviamente, os Estados Unidos, segundo suas
próprias leis, até porque os ataques que provocaram a morte de quase
3.000 americanos ocorreram dentro do seu território. Até aí, nada de
antijurídico. Neste ponto, no entanto, tem início uma série de
violações aos direitos humanos praticada pelo governo da maior
democracia do mundo. Passamos a elencá-las, tomando como ponto de
partida a Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada pela
Assembléia Geral das Nações Unidas (ONU), em 10 de dezembro de 1948. Os
primeiros artigos estabelecem alguns princípios básicos que já nos
levam a refletir sobre a legitimidade da política americana sobre
terrorismo.”Art.I. Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos…””Art.II.Todo homem tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades
estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja
de raça, cor, sexo, língua, religião…””Art.III. Todo homem tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal””Art.VI. Todo homem tem o direito de ser, em todos os lugares, reconhecido como pessoa humana, perante a lei.”Primeira violação: a criação de tribunais deexceção (militares) para julgamento de terroristas “Art.X. Todo
homem tem direito, em plena igualdade, a uma justa e pública audiência
por parte de um tribunal independente e imparcial…”Ao invés de submeter os presos ao julgamento de
um tribunal federal americano preexistente, o governo Bush criou, no
dia 13 de setembro de 2001, tribunais militares, vale dizer, tribunais
de exceção (aqueles constituídos após os fatos terem sido praticados)
para processar e julgar os inimigos dos Estados Unidos (os “combatentes
inimigos”). O “tribunal independente e imparcial” a que se refere o
Art.X da declaração é o tribunal que já existe antes do crime e, por
isso, mais predisposto à imparcialidade. A criação posterior de
tribunais militares viola uma garantia de justiça, aquilo que as
constituições nacionais em todo o mundo chamam de princípio do juiz
natural ou princípio do juiz constitucional.Apesar de a Suprema Corte, em 2006, ter
reconhecido os tribunais militares como tribunais de exceção, tal
decisão acabou sem efeito por conta de ato do Congresso Americano que
permitiu o prosseguimento da atividade dessas cortes extraordinárias.Segunda violação: a manutenção das prisõesrealizadas por tempo indeterminado “Art.IX. Ninguém será arbitrariamente preso, detido ou exilado”; “Art.X. Todo homem tem direito…(a) um tribunal…para decidir… do fundamento de qualquer acusação criminal contra ele.”Apesar da existência de normas de direito
americanas (“Patriotic Act” – Lei Antiterror) que regulam a detenção
provisória ou preventiva de pessoas sob investigação, fixando prazos e
condições – dentre elas a exigência de que uma acusação formal tenha
sido feita – , nada disso foi aplicado aos suspeitos de terrorismo.
Centenas permanecem detidos sem que haja contra eles qualquer imputação
criminal, apesar o longo tempo já transcorrido desde os ataques às
torres gêmeas.Terceira violação: a prática de tortura “Art.V. Ninguém será submetido a tortura nem a tratamentoou castigo cruel, desumano ou degradante.”Conhecidas são, e há bastante tempo, as
denúncias da imprensa internacional e de organismos de defesa dos
direitos humanos contra a tortura física e psicológica praticada por
militares americanos contra suspeitos de terrorismo. Apesar do repúdio
internacional a tais práticas, os presos de Guantánamo não estão livres
deste método medieval.Uma lei sancionada por Bush, em 2006,
denominada de Ato de Comissões Militares, permitia o uso de informações
obtidas sob tortura. A vergonha é ainda maior quando se sabe que a
Convenção de Genebra veda terminantemente o uso de tortura contra
prisioneiros de guerra.Quarta violação: a inaplicabilidade dos princípiosda ampla defesa e da presunção de inocênciaem favor dos suspeitos de terrorismo “Art.XI. Todo homem
acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente,
até que sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em
julgamento público, no qual lhe tenham sido asseguradas todas as
garantias necessárias à sua defesa.”Também no caso de processos efetivamente
instaurados contra terroristas (ou supostos terroristas), outros tantos
direitos processuais fundamentais foram sistematicamente desrespeitados
pelos tribunais militares americanos, como por exemplo, a chamada
“ampla defesa” ou simplesmente “direito de defesa”. Antes de mais nada,
não se pode deixar de reconhecer que não existe processo justo sem que
o réu possa se fazer ouvir diante de um juiz, o que significa, na
verdade, uma série de direitos, tais quais o de tomar conhecimento da
acusação, ter um advogado, negar a imputação, poder fazer prova,
contra-prova, sustentar razões e recorrer. Várias dessas prerrogativas
processuais jamais foram respeitadas nestes tribunais militares
americanos, incluindo o direito de apelar da sentença. Somadas todas
essas violações, o que se percebe é que a garantia da presunção de
inocência perante tais cortes não possui nenhum valor. Afinal, que
presunção é esta se o réu permanece invariavelmente preso, é submetido
à tortura e a efetiva defesa não lhe é facultada? E mais: que presunção
é esta se o próprio tribunal se afigura como tipicamente de exceção?Quinta violação: a negativa de acesso aos tribunaisamericanos ordinários para a discussão da legalidadedos procedimentos contra o terrorismo “Art.VII. Todos
são iguais perante a lei e têm direito, sem qualquer distinção, a igual
proteção da lei. Todos têm direito a igual proteção contra qualquer
discriminação que viole a presente Declaração…””Art.VIII.Todo homem tem direito a receber, dos tribunais nacionais competentes,
remédio efetivo para os atos que violem os direitos fundamentais que
lhe sejam reconhecidos pela constituição e pela lei.”Se não bastassem as violações às garantias de
um julgamento imparcial (os tribunais de exceção criados por Bush), de
legalidade da privação da liberdade (as prisões por prazo
indeterminado), da proibição da tortura, do direito de defesa e da
presunção de inocência, também o recurso aos tribunais americanos
ordinários permaneceu fechado aos presos por suspeita de terrorismo. Em
face de um sistema judicial paralelo, extraordinário e de exceção, como
este dos tribunais militares americanos, não há lugar para a igualdade
perante a lei, perante o judiciário, nem igualdade de remédios
processuais contra atos de violação de direitos fundamentais. De 11 de
setembro de 2001 para cá pouco restou, em termos de direitos, aos que
foram detidos pelo governo americano. Em 2006, o mesmo Ato das
Comissões Militares retirou expressamente dos presos de Guantánamo o
direito ao habeas corpus.Uma luz no fim do túnel Sete anos após o início de toda essa história
de violação dos direitos humanos – inaugurada com a criação dos
tribunais militares para julgamento de atos terroristas – , alguns
princípios jurídicos voltam a dominar a consciência da maioria dos
juízes da Suprema Corte dos Estados Unidos. De acordo com a decisão
anunciada em junho, fica reconhecido o direito do preso por terrorismo
de recorrer contra a sentença perante tribunal federal americano com o
fim de fazer valer sua liberdade com base na própria Lei Antiterror
(“Patriotic Act”). O fundamento básico desta decisão histórica se ateve
à argumentação de que a base de Guantánamo (onde o tribunal militar
está estabelecido) funciona como território dos Estados Unidos e, por
isso, a constituição e as leis americanas devem ser aplicadas aos
presos que ali se encontram. Já é alguma coisa.Anteriormente, uma decisão de uma corte
estadual já havia reconhecido que as forças armadas não poderiam deter
pessoas por tempo indeterminado, pelo menos dentro do território
americano, já que segundo a Lei Antiterror a prisão de uma pessoa só se
justifica em hipóteses expressamente previstas (acusação criminal,
deportação, necessidade de prestar depoimento como testemunha ou
detenção provisória).Alguém já disse que uma nação sem boas leis
civis é pobre, mas que um país sem boas leis processuais é escravo. Que
a luz no fim do túnel representada por essas poucas decisões judiciais
se torne cada vez mais forte para dissipar a escuridão do arbítrio e da
escravidão no país da liberdade. Fonte Valor On line

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