Submitted by eopen on qua, 18/07/2018 – 10:42 Em meio a tantas notícias e informações veiculadas pela imprensa nestas últimas semanas acerca do conflito que envolve a demarcação da reserva indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, percebe-se com facilidade que falta maior divulgação a respeito daquilo que é realmente central e decisivo para o julgamento que o STF está prestes a proferir: o que diz a Constituição sobre os índios, terras indígenas e demarcação? Deixando de lado, portanto e propositalmente, os relevantes aspectos políticos, sociais e econômicos do caso, detenhamo-nos, neste momento, apenas na sua abordagem jurídica para que se possa alcançar uma compreensão mais profunda da controvérsia que se encontra hoje submetida ao Poder Judiciário.Constituição: preservação e reparação Inicialmente, é preciso que se diga que a Constituição dedica, pelo menos, duas dezenas de dispositivos aos índios, com o que o Brasil reconhece de forma explícita a importância histórica dessa gente, a necessidade de garantir a sua preservação étnica de prover os meios de subsistência num ambiente natural que, por séculos lhe pertenceu com exclusividade. Em outras palavras, o que a Constituição faz, ao instituir terras indígenas, é preservar uma cultura, mas também buscar reparação pelo quase extermínio de um povo que somava alguns milhões de pessoas quando Cabral aqui desembarcou e que, hoje, não passa de algumas centenas de milhares.”Art.231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”.”Par. 4º. As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis”.Observe-se que se o texto deste artigo 231 que transcrevemos se refere genericamente às “terras que tradicionalmente ocupam”, o parágrafo 4º vai especificar detalhadamente o que se deve considerar terra indígena, prevendo nada menos do que quatro caracterizações diferentes desses espaços territoriais com o que a Constituição busca, por meio de limitações descritivas, trazer segurança jurídica para a definição do que são as terras dos índios e para a conseqüente demarcação a ser realizada.”Par.1º. São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”.Já aqui repousam algumas dúvidas importantes que deverão ser dirimidas pelo STF quando do julgamento das ações. Será que todo o território da reserva Raposa Serra do Sol compreende terras “habitadas em caráter permanente” (1), “utilizadas para…” (2), “imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais…” (3) e “necessárias a sua reprodução física e cultural…” (4)? Mesmo considerando que cinco etnias, duzentas comunidades e quase dezenove mil índios se encontram diretamente envolvidos será que são necessários 1.700.000 hectares para permitir a sobrevivência e desenvolvimento de populações indígenas tão pequenas? Há ou não há irregularidades no laudo antropológico da Funai que serviu de base a demarcação? E quanto aos não-índios que habitam supostamente a região há décadas, o que descaracterizaria constitucionalmente as terras pelo menos como “habitadas em caráter permanente” ou “utilizadas para… atividades produtivas”? Eis algumas questões a serem dirimidas pelo Supremo.É bom registrar, ainda, o que dispõe o parágrafo 2º do mesmo artigo 231:”Par.2º. As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nela existentes.”Posse permanente da terra Note-se que a disposição constitucional transcrita não fala de propriedade, mas apenas de “posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo…” (usufruto é o direito de usar e de fruir, o que significa, em termos jurídicos, os direitos de se utilizar da terra e de tirar dela os seus frutos, tanto no sentido físico-natural, como no sentido jurídico-econômico). Não se fala de propriedade, porque, de acordo com o artigo 20, inciso XI da Lei Maior, “São bens da União: … XI- as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios”, de sorte que, apesar de demarcada e homologada a demarcação sobre terra indígena, ela sempre continuará pertencendo a União. Aliás, sobre a demarcação é bom que se diga que o artigo 67, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, estabelece que “A União concluirá a demarcação das terras indígenas no prazo de 5 (cinco) anos a partir da promulgação da Constituição”. Estamos, por conseqüência, atrasados quase quinze anos completos…Demarcação das terras Um outro aspecto constitucional importantíssimo para a compreensão do tema terra indígenas e sua demarcação se localiza na previsão contida no parágrafo 3º, do artigo 231:”Par.3º. O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei.”O que se tem aqui é que, por integrarem as terras indígenas o patrimônio imobiliário da União como visto, a Magna Carta reserva à competência do Congresso Nacional, com exclusividade o poder para autorizar ou não o aproveitamento de recursos hídricos e de outros potenciais energéticos, além da pesquisa e lavra das riquezas minerais, do que decorre que, apesar das demarcações homologadas, o direito de exploração econômica por parte das comunidades indígenas permanece ilimitado.Limitado também é o próprio direito dos grupos indígenas à permanência física nas terras demarcadas como se pode perceber pela simples leitura do parágrafo 5º, do artigo 231, que estabelece:”Par.5º. É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, ad referendum do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou interesse da soberania do País, após deliberação no Congresso Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato Logo que cesse o risco.”Garimpos Outro limite jurídico imposto às reservas dos índios se encontra estampado no parágrafo 7º do tão repetido artigo 231 que diz não se aplicar “às terras indígenas o disposto no artigo 174, parágrafos 3º e 4º”, significando a não-sujeição de tais terras à “atividade garimpeira em cooperativas” (parágrafo 3º), excluída qualquer prioridade na autorização ou concessão para pesquisa e lavra dos recursos e jazidas minerais garimpáveis (parágrafo 4º).Demarcação contínua ou não-contínua Para encerrar, cabe-nos fazer referência uma matéria de alta indagação que o STF haverá de enfrentar ao julgar as causas relacionadas à reserva Raposa Serra do Sol: a dúvida sobre a demarcação se dar de forma contínua ou não-contínua e sua implicação sobre a soberania brasileira.O problema é que a demarcação contínua, na específica situação da reserva da Raposa Serra do Sol, acabará colocando o território demarcado exatamente na fronteira da Venezuela e da República da Guiana, onde vivem povos das mesmas etnias dos índios brasileiros, sem que se possa impedir o livre trânsito de um lado para o outro. Pior, ainda, porque diferentemente de outros países que possuem populações indígenas, o Brasil aderiu a Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas, da ONU, que reconhece a autonomia dessas populações para decidir sobre sua condição política e o estabelecimento de relações com outros povos, o que pode vir a significar – com o apoio e a pressão internacionais – uma quase que “soberania paralela” dentro do território brasileiro e fisicamente situada a um passo da Venezuela e da República da Guiana. Por outro lado, uma eventual decisão do STF que resolvesse pela demarcação não-contínua, vale dizer sob a forma de ilhas – sustentável em não poucos argumentos jurídicos – significaria, na prática, um decreto judicial de diminuição do tamanho da reserva (ou reservas) e de deslocamento da terra indígena para longe da fronteira o que viabilizaria a ocupação por não-índios e a permanência do exército brasileiro na área fronteiriça. Fonte Veja.com.br/seusdireitos
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